luni, 2 august 2010

Transposição da Directiva Bolkestein pelo Decreto-Lei 92/2010, de 26 de Julho (1ª parte)

SUMÁRIO: 1) Para além das agências de viagens, a Directiva Bolkestein, agora transposta pelo Decreto-Lei 92/2010, de 26 de Julho, abrange outras actividades de relevo para o turismo como o rent-a-car, a animação turística / operadores marítimo-turísticos e os estabelecimentos de restauração e bebidas.

2) Os estabelecimentos que não tenham fins de prevenção da doença, terapêutica, reabilitação e manutenção da saúde, os quais se dedicam exclusivamente a finalidades estéticas, à beleza e ao relaxamento são excluídos da disciplina da actividade termal passando a ser considerados equipamentos de animação turística.

1) Introdução

O Decreto-Lei nº 92/2010, de 26 de Julho, vem estabelecer os princípios e as regras necessárias para simplificar o livre acesso e exercício das actividades de serviços e transpõe a Directiva n.º 2006/123/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro, vulgarmente conhecida por Directiva Bolkestein ou Directiva dos Serviços.

Embora uma boa parte do preambulo procure enquadrar o diploma legal no Programa do Governo, o sumário e o articulado revelam claramente o propósito dominante, ou seja, a transposição da Directiva Bolkestein (art.º 1º/2).

O diploma tem como objectivo fundamental a fixação dos princípios e das regras necessárias para simplificar, no território nacional, o livre acesso e exercício à actividade de serviços (art.º 1º/1) excluindo-se do seu âmbito as que sejam desenvolvidas com gratuitidade ou seja, apenas relevam as que tenham contrapartida económica (art.º 3º/1).

2) Âmbito objectivo e subjectivo

A quem se aplicam estas normas (âmbito subjectivo) e a que situações (âmbito objectivo), são matérias reguladas respectivamente nos artigos 2º e 3º.

O âmbito subjectivo: prestadores de serviços estabelecidos em Portugal ou noutro Estado membro da União Europeia ou do Espaço Económico Europeu sejam pessoas singulares ou colectivas.

No âmbito objectivo as actividades de serviços desenvolvidas com carácter remunerado e que sejam oferecidas ou desenvolvidas em Portugal. Com carácter exemplificativo – ou seja, o legislador limita-se a enumerar alguns exemplos mas existem outros - surge-nos no final do diploma um anexo com uma listagem de actividades. Algumas delas respeitam ao turismo, a saber:

- Agências de viagens de turismo;

- Aluguer de veículos automóveis sem condutor (rent-a-car);

- Animação turística e de operadores marítimo-turísticos;

- Operações turísticas de observação de cetáceos;

- Restaurantes e bares (estabelecimentos de restauração ou de bebidas);

Por serviço entende-se qualquer actividade económica não assalariada – isto é, sem a natureza de contrato de trabalho subordinado, o qual é desenvolvido sob autoridade e direcção de outrem - prestada normalmente mediante remuneração, remetendo-se expressamente para o art.º 57.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) (art.º 3º/2).

Existem, porém, serviços aos quais não é aplicável o diploma, que se encontram excluídos do seu âmbito de aplicação (art.º 3º/3):

a) Os serviços financeiros;

b) Os serviços e as redes de comunicações electrónicas;

c) Os serviços no domínio dos transportes e de navegação marítima e aérea, incluindo os serviços portuários e aeroportuários, na condição de estarem abrangidos pelo âmbito do título VI do TFUE;

d) Os serviços de empresas ou agências de trabalho temporário;

e) Os serviços de cuidados de saúde;

f) As actividades cinematográficas, de rádio e audiovisuais,

g) As actividades de jogo a dinheiro;

h) Os serviços sociais no sector da habitação, da assistência à infância e serviços dispensados às famílias necessitadas;

i) Os serviços de segurança privada;

j) Os serviços prestados por qualquer entidade no exercício de autoridade pública de harmonia com o art.º 51º do TFUE;

l) Os serviços prestados por notários.

3) O livre acesso e exercício das actividades de serviços

O princípio fundamental fixado no art.º 49º do Tratado de Roma no qual se determina que as restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas relativamente aos nacionais dos Estados membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação surge-nos agora no art.º 4º, que consagra igualmente a liberdade de estabelecimento.

De harmonia com estes dois estruturantes princípios os prestadores de serviços – quer as pessoas singulares ou colectivas nacionais quer as sedeadas noutro Estado membro - podem livremente estabelecer-se e exercer a sua actividade em território português, designadamente através da criação de sociedades, sucursais, filiais, agências ou escritórios fazendo-o em regra sem necessidade de qualquer permissão administrativa ou até de uma mera comunicação prévia. No entanto apesar da regra ser a desnecessidade de permissão administrativa ou comunicação prévia consagram-se algumas excepções no capítulo III (artigos 8º a 18º) as quais se traduzem um duplo condicionalismo: situações em que lei preveja tal permissão administrativa e a mesma possa ser estabelecida (art.º 4º/1).

O conceito de estabelecimento é fixado no nº 2 do art.º 4º: o exercício efectivo pelo prestador de uma actividade económica não assalariada de harmonia com o art.º 49.º do TFUE ou a constituição e gestão de empresas - sobretudo sociedades comerciais - por tempo indeterminado utilizando uma infra-estrutura estável a partir da qual a prestação de serviços é efectivamente assegurada.

Para assegurar as liberdades fundamentais de estabelecimento e prestação de serviços impõe-se a simplificação administrativa, matéria que figura no capítulo II (artigos 5º a 7º).

4) Simplificação administrativa. O balcão único dos serviços

O art.º 5º impõe a regra da redução ao mínimo indispensável dos encargos sobre os prestadores de serviços dos procedimentos administrativos que o diploma contemple bem como de documentos ou actos que tenham de praticar ou enviar às autoridades. Assim, todos os pedidos, comunicações e notificações entre os prestadores de serviços e as autoridades administrativas impõe-se que sejam realizadas através do balcão único electrónico.

A criação do balcão único dos serviços (art.º 6º) associada à desmaterialização de procedimentos constitui uma das medidas mais emblemáticas visando a simplificação e a desburocratização facilitando a vida às pessoas e às empresas prestadoras de serviços. Permite a qualquer prestador ou destinatário de serviços de todos os Estados o acesso por via electrónica às competentes autoridades administrativas. Deste modo, todos os pedidos, comunicações e notificações entre os prestadores de serviços e outros intervenientes nos procedimentos, neste se incluindo as autoridades, devem poder ser efectuados por meios electrónicos e de forma centralizada.

Um vasto acervo informativo é disponibilizado aos prestadores e aos destinatários de serviços de todos os Estados informação, em pelo menos três línguas (português, inglês e castelhano) de forma clara, inequívoca e actualizada, a saber:

a) Os requisitos aplicáveis à prestação de serviços;

b) Os endereços e os contactos das competentes autoridades administrativas;

c) Os meios e as condições de acesso às bases de dados públicas v.g. registos e notariado;

d) Os meios de reacção judiciais ou extrajudiciais de resolução de litígios entre prestadores de serviços, entre as autoridades administrativas e os prestadores de serviços ou entre um prestador e o destinatário do serviço;

e) Os endereços e os contactos de quaisquer entidades que prestem assistência a prestadores ou a destinatários;

f) Lista exemplificativa dos documentos que as autoridades administrativas competentes aceitam em substituição dos documentos legalmente exigidos;

g) Lista dos documentos que devem ser apresentados sob a forma original, autêntica, autenticada, cópia ou tradução certificadas ou com reconhecimento de letra e assinatura, ou só de assinatura, fundamentada em imperiosa razão de

interesse público;

Procura-se, por outro lado, facilitar a prova por documental relativa a um requisito para o acesso ou exercício da actividade através da aceitação de documentos que tenham uma finalidade equivalente ou que demonstrem a verificação do facto, independentemente de terem sido emitidos em Portugal ou noutro Estado membro (art.º 7º). Neste último caso, em regra não pode ser exigida a apresentação sob a forma original, autêntica, autenticada ou cópia ou tradução certificadas. Existem, no entanto, algumas excepções como o reconhecimento das qualificações profissionais.

5) Situações em que se mantêm as licenças, autorizações, validações e outras permissões administrativas no acesso ou exercício da actividade de serviços

O capítulo III (artigos 8º a 18º) disciplina a matéria das permissões administrativas para acesso ou exercício das actividades de serviços - licenças, autorizações, validações, autenticações, certificações, actos emitidos na sequência

de comunicações prévias com prazo e registos - ou seja, situações em que uma actividade de serviços não pode ser prestada livremente ou através de uma mera comunicação prévia.

Estas situações que escapam à regra da liberdade de estabelecimento e livre prestação de serviços ficam, no entanto, sujeitas de harmonia com o nº 3 do art.º 8º a um exigente conjunto de princípios:

1) Princípio da legalidade;

2) Princípio da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos;

3) Princípio da igualdade;

4) Princípio da proporcionalidade neste se incluindo os princípios da adequação, da necessidade e da proporcionalidade stricto sensu;

5) Princípio da justiça;

6) Princípio da imparcialidade, incluindo a objectividade;

7) Princípio da boa-fé;

8) Princípio da colaboração da administração com os particulares, incluindo a publicidade;

9) Princípio da participação, incluindo a transparência;

10) Princípio da decisão;

11) Princípio da desburocratização e da eficiência, incluindo a simplicidade, celeridade e decisão final no mais curto prazo possível, clareza e transparência;

12) Princípio da gratuitidade, excepcionando -se os casos em que, atento o princípio da proporcionalidade, por lei, o prestador de serviços possa ser sujeito à cobrança de uma taxa pelo custo do procedimento;

13) Princípio do acesso à justiça.

Do art.º 9º resulta, por outro lado, um apertado condicionalismo para o estabelecimento de uma permissão administrativa: 1º) Que o objectivo não possa ser alcançado através de um meio administrativo menos restritivo; 2º) Que as suas formalidades se encontrem clara e inequivocamente previstas na lei; 3º) Absoluta indispensabilidade da permissão administrativa; 4º) Justificação, de forma proporcional, por uma imperiosa razão de interesse público de harmonia com o nº 1 do artigo 30.º.

Outro princípio importante é o da igualdade e não discriminação de prestadores de serviços, não podendo em conformidade estabelecer-se requisitos ou condições discriminatórias baseadas na nacionalidade, local de residência ou sede (art.º 10º).

6) Exclusão de alguns estabelecimentos da actividade termal

No Capítulo VII alteram-se normas de alguns regimes sectoriais. Em primeiro lugar os estabelecimentos que não tenham fins de prevenção da doença, terapêutica, reabilitação e manutenção da saúde, os quais se dedicam exclusivamente a finalidades estéticas, à beleza e ao relaxamento. Opera-se a exclusão da disciplina da actividade termal (Decreto-Lei nº 142/2004, de 11 de Junho) passando a ser considerados equipamentos de animação turística sendo-lhes aplicável o regime previsto no Decreto –Lei n.º 108/2009, de 15 de Maio.

Seguem-se o regulamento da actividade de observação de cetáceos nas águas de Portugal continental, regime jurídico da qualidade da água para consumo humano, regime jurídico dos serviços municipais de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos, regime jurídico dos serviços de âmbito multimunicipal de abastecimento público de água, de saneamento de águas residuais e de gestão de resíduos urbanos e, por fim, o regime legal da incineração e co-incineração de resíduos.

Turisver on-line, 2 de Agosto de 2010

Carlos Torres

Advogado. Professor ESHTE/INP/ULHT

http://carlosmtorres.blogspot.com