vineri, 28 ianuarie 2011

A revisão da Lei das Agências de Viagens e a proposta de um Fundo de Garantia
















Com um novo poder regional do turismo sujeito ao garrote financeiro do Turismo de Portugal, um PENT com objectivos manifestamente irrealistas e infantilidades como resorts atravessados por comboios, só falta mesmo destruir um elevado número de PMEs exigindo-lhes, num período complicado, significativas verbas em dinheiro para o fundo de garantia e que assumam as consequências da gestão de outras empresas
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1) Introdução. Um conjunto de alterações impostas pela transposição da legislação comunitária

A Directiva Bolkestein, também conhecida por Directiva dos Serviços, está na origem de um conjunto de alterações à Lei das Agências de Viagens e Turismo (LAVT) que se encontram em adiantada fase de negociação.

A sua transposição tinha como data limite 31 de Dezembro de 2009, sendo que a primeira etapa – abrangendo os aspectos mais gerais – ocorreu em Julho de 2010 através do Decreto-Lei n.º 92/2010, de 26 de Julho. Para alguns sectores uma ou duas normas foram suficientes para adequar o seu regime, para outros, como sucede nas agências de viagens, há ainda que proceder a um significativo número de acertos.

Está, assim, a decorrer a segunda etapa, a transposição sectorial, envolvendo aspectos de pormenor, visando a compatibilização nos diferentes sectores dos serviços, como sucede com as agências de viagens, tendo sido entregue à APAVT em Novembro de 2010 um anteprojecto de alterações à LAVT em ordem à sua compatibilização com Bolkestein.

No essencial, com a Directiva dos Serviços ou Bolkestein, como também é conhecida, pretende-se a consolidação de uma das quatro liberdades fundamentais da União Europeia. Depois da livre circulação de pessoas, mercadorias e capitais, é agora a vez de implementar a liberdade da prestação de serviços no interior da União Europeia.

Uma nota para o reprovável secretismo que tem rodeado a presente revisão legislativa afastando da discussão desta importante matéria profissionais do sector, universidades e outros interessados. Infelizmente, uma tendência constante de governação socialista com a única excepção da Lei de Bases do Turismo cujo ante-projecto foi publicado no site do Turismo de Portugal, IP.

2) Síntese das alterações e dos requisitos de acesso ao mercado

Principais alterações propostas pelo Governo

As pessoas singulares passam a poder exercer a actividade.

Mantendo-se a distinção entre actividades próprias e acessórias, deixa de constituir actividade própria a reserva de serviços em empreendimentos turísticos localizados em Portugal, permitindo, assim, que as empresas de animação possam efectuar reservas neste âmbito.

Desaparecem os elevados requisitos de capital social mínimo (100.000 €) e um conjunto de normas que regulam as relações entre as agências de viagens e os empreendimentos turísticos.

A disciplina continua a assentar na distinção viagens turísticas, viagens organizadas e por medida bem como na intermediação.

Mantém-se a disciplina das viagens organizadas constante da Directiva 90/314/CEE, de 13 de Junho de 1990 (transposta em 1993).

Propõem-se novos requisitos para o exercício da actividade

Em vez da actual licença constante de alvará, comunicação prévia com prazo ao Turismo de Portugal, IP e subsequente inscrição num Registo Nacional das Agências de Viagem e Turismo (a inscrição tem como contrapartida o pagamento de uma taxa de 1.500 €).

Subscrição do Fundo de Garantia relativo às Viagens Organizadas em substituição do actual sistema de caução apurado com base em 5% do valor dos pacotes turísticos vendidos no ano anterior. As empresas doutro Estado-membro da União Europeia que pretendam exercer a sua actividade em Portugal – ainda que temporariamente – têm de demonstrar que prestaram garantia equivalente no seu país.

Contratação de um seguro de responsabilidade civil (sem alterações).

Adesão a um Centro de Arbitragem a fundar em moldes tendencialmente idênticos aos da actual Comissão Arbitral não se consagrando, assim, a figura do Provedor do Cliente.

3) A introdução de um mecanismo de responsabilização colectiva em substituição do actual modelo de responsabilidade individual

3.1) Aspectos em que o Fundo de Garantia coincide com o sistema de caução

Vejamos, agora com maior detalhe, a proposta relativa ao fundo de garantia. Por um lado, o novo mecanismo proposto coincide com o sistema de caução vigente cobrindo duas vertentes:

1ª) O reembolso dos montantes entregues pelos clientes relativos a viagens organizadas comummente designadas por pacotes turísticos;

2ª) O reembolso das despesas suplementares suportadas pelos clientes em consequência da não prestação dos serviços ou da sua prestação defeituosa no âmbito de viagens organizadas.

Tal como a caução, é anualmente actualizável em função do volume de negócios do ano anterior e os consumidores lesados accionam o fundo de garantia com base em sentença judicial transitada que mencione o montante da dívida.

3.2) Aspectos que diferenciam os dois mecanismos

O fundo de garantia apresenta alguns aspectos que marcam uma diferença substancial do sistema vigente sobre o qual nenhumas dúvidas foram levantadas durante vinte anos relativamente à sua compatibilidade com a Directiva 90/314/CEE que regula a matéria dos pacotes turísticos. Vejamos quais são:

1) Contribuição obrigatória em dinheiro não permitindo, como sucede actualmente, a possibilidade de garantia bancária ou seguro-caução.

2) O valor é de 1% de todas as vendas realizadas pela agência de viagens e não numa percentagem (5%) das vendas de pacotes turísticos. Mesmo que a agência não comercialize viagens organizadas terá de contribuir para o fundo.

3) Não há limite máximo (250.000 €) e é estabelecido um valor mínimo de 12.500 € coincidente com o valor pago actualmente pela emissão de um alvará.

4) À garantia individual ínsita ao sistema da caução – cada agência ou operador responde por si – o fundo de garantia representa uma garantia colectiva pelo que um número reduzido de empresas que entrem em incumprimento perante os consumidores podem num ápice esgotar as verbas que o dotam.

4) O risco de mega fraudes e a adequação do sistema existente

A criação do fundo gera objectivamente o perigo de uma mega fraude – um preço ardiloso, especialmente atractivo para milhares de consumidores que ficarão em terra ou retidos por falta de pagamento em distantes complexos turísticos – porquanto a pressão que em caso de incumprimento incide sobre o operador turístico e a agência que comercializou o pacote é, em boa parte, transferida para o fundo. As centenas ou milhares de consumidores lesados percebem onde está o dinheiro e transferem-se das instalações da empresa incumpridora para o Centro de Arbitragem.

Como as empresas que lesam o consumidor entrarão com elevada probabilidade num processo de insolvência, o fundo será reposto a expensas daquelas que continuam no mercado, que cumprem as suas obrigações e que, inclusivamente, terão sido prejudicados pelas práticas temerárias de preços baixos dessas empresas.

Surpreendentemente, o sistema actual de caução comporta adequadas garantias para o consumidor que pode indistintamente, como lhe aprouver, accionar a garantia do operador turístico que elaborou o pacote turístico ou da agência de viagens que o comercializou. Para além disso, dispõe – ou deveria dispor, se o Turismo de Portugal tivesse cumprido a obrigação do art.º 10.º da LAVT – de informação relativamente ao montante da caução das empresas com quem contrata, o que lhe permite avaliar o risco da compra.

Se o objectivo é proteger o consumidor, basta fornecer-lhe, para além do número do alvará e de outros elementos, o montante da caução da agência organizadora e da agência vendedora do pacote turístico.

5) O Estado como pessoa de bem fazendo ingressar no Fundo uma parte substancial das elevadas taxas que cobrou pelo alvará de agência de viagens

Já referi em posições anteriores que o nexo de reciprocidade entre a taxa e o serviço prestado impõe que o Estado devolva ao sector das agências de viagens os elevados montantes (12.500 €) cobrados pelos alvarás, podendo, caso venha o fundo de garantia a ser constituído, lá ingressarem uma parte substancial daquelas verbas.

6) Últimos desenvolvimentos

O presente artigo reproduz o essencial da minha intervenção em Lisboa numa conferência sobre questões actuais das leis do turismo, no passado dia 19 de Janeiro. No dia seguinte, o SET fazia declarações insistindo na constituição do fundo mas retomando surpreendentemente a percentagem inicialmente proposta (0,1% em vez 1%) com um tecto máximo de 10.000 € para operadores turísticos e de 7.500 € para agências de viagens.

Ora, não existindo distinção legal entre agências de viagens e operadores turísticos, a proposta afigura-se-me pouco sensata, constituindo uma espécie de retorno ao Decreto-Lei n.º 359/79, de 31 de Agosto, que operava uma distinção tripartida entre agências de viagens – grossistas, operadores e retalhistas –, a qual decorria do tipo de actividade e do âmbito territorial da sua acção.

Detecto, assim, para além do habitual secretismo legiferante, o carácter errático das propostas que não raro provocaram consequências negativas como a destruição das instituições nacionais do turismo, num novo poder regional do turismo sem meios ou na consagração legislativa de figuras caricatas como resorts atravessados por comboios, uma originalidade pátria.

AfinALL foram estes visionários governantes e dirigentes públicos (maxime o SET e o presidente do TP) que nos acenaram anos a fio com um dispendioso PENT – no qual, pasme-se, se esqueceram dum produto estratégico denominado turismo religioso – relativamente ao qual para cumprir as suas irrealistas metas teríamos até 2015 de crescer quase o dobro dos turistas estrangeiros (de 11 ou 12 milhões para 20 milhões, quando no melhor ano crescemos 100 000 turistas relativamente a 2000) e de duplicar receitas relativamente às quais existem públicas desconfianças sobre a sua verosimilhança (de 7,5 para 15 mil milhões de euros).

Os poderes públicos do turismo falharam duplamente ao não constituir atempadamente um registo público que a lei lhes impõe desde 2007 e em que deveria figurar a caução, permitindo que os consumidores pudessem aferir o valor prestado (não haveria, assim, surpresas no caso Marsans) e na atitude evasiva de não pretenderem devolver ao sector, directa ou indirectamente, alguns milhões de euros que anos a fio ilegitimamente lhe cobraram, pois não existe qualquer nexo de reciprocidade entre o custo administrativo da emissão do alvará e a verba de aproximadamente 12.500 € que é cobrada.

Assobiam para o lado e, para se justificarem, acenam com uma velha proposta da APAVT tal como o fizeram aquando da derrocada institucional com a grande casa do turismo português. Ora, se os desejos desta representativa associação empresarial fossem para o Governo importantes, porque não consagram a figura do Provedor do Cliente cuja celeridade contrasta com a lentidão da comissão arbitral do TP?

Porque insistem na consagração de um Centro de Arbitragem, um modelo claramente sucedâneo da actual Comissão Arbitral, em vez de reconhecer a figura do Provedor do Cliente?

Para além dos riscos que o fundo comporta ao evoluir-se de um sistema de responsabilidade individual para um sistema de responsabilidade colectiva em que as empresas cumpridoras podem vir a pagar os erros de outras que enveredaram por uma gestão temerária, quaisquer verbas em dinheiro que as PMEs, neste momento, tenham de pagar para o fundo de garantia podem constituir a gota que faz transbordar o copo e lançá-las na insolvência.

Versão integral do texto publicado no Publituris de 28 de Janeiro de 2011, pág. 4