Resumo: O RJET permite a dispensa de requisitos (art.º 39º), na vertente tradicional (nºs 1 e 2), ou, desde 2014, a assente em critérios específicos a concretizar pelo legislador em sede regulamentar (nºs 7 e 8). No entanto, a projectada revisão da Portaria nº 327/2008, viola grosseiramente o art.º 34º do RJET em que a classificação tem carácter obrigatório, não podendo o empreendedor prescindir da categoria (estrelas). O plano regulamentar (portaria) desenvolve ou pormenoriza a lei (RJET), não pode com ela conflituar, tendo a ideia dos hotéis sem estrelas sido completamente afastada ao não consagrar-se o nº 2 do art.º 34º, que esvaziava o carácter obrigatório da classificação. Dispensar requisitos não é o mesmo que dispensar a classificação, sendo que o movimento de desqualificação da oferta de alojamento já terá ido longe de mais nesta legislatura. A questão respeita aos concorrentes mas também aos consumidores.
1) Introdução
Nos trabalhos preparatórios da última revisão do RJET, publicada em
2014, que boa parte do sector acreditou ter sido despoletada para limitar o
alojamento local - mas que, ao invés,
acabou por o potenciar fortemente através da criação do permissivo RJAL -
destacava-se uma ideia cara ao Secretário de Estado do Turismo (SET): a
possibilidade de criação de hotéis sem estrelas, mediante uma simples
decisão do empreendedor.
Tendo tal solução sido expressamente afastada pelo RJET, existe actualmente uma tentativa da sua
recuperação, qual Fénix renascida, a propósito da revisão da Portaria nº
327/2008, de 28 de Abril (regulamenta o RJET relativamente aos requisitos de
classificação dos estabelecimentos hoteleiros, aldeamentos e apartamentos
turísticos). A tentativa de recuperação da ideia dos hotéis sem estrelas
opera-se através do nº 2 do art.º 4º-A, um preceito que a proposta legislativa
adita.
Empreendamos, pois, um breve excurso pelas várias etapas desta
problemática, por forma a demonstrar que projectada revisão da portaria não vai
no sentido que o RJET impõe. Pior do que isso, conflitua com o RJET ao
recuperar uma solução que colide com a natureza obrigatória da classificação plasmada
no art.º 34º.
2) A solução inicialmente proposta para
os hotéis sem estrelas: um novo nº 2 do art.º 34º RJET
A solução proposta pelo governante, amplamente
divulgada pelos media, implicava profundas alterações ao art.º 34º,
preceito que consagra a obrigatoriedade
da classificação. No projectado preâmbulo
da revisão do RJET avançava-se a seguinte explicação: “No processo de classificação,
adopta-se um sistema
facultativo no que à sua implementação
diz respeito, cabendo aos promotores a decisão de sujeitar, ou não, o seu
empreendimento turístico a determinada tipologia.” (sublinhado nosso).
O essencial da proposta legislativa residia naturalmente no
articulado, mantendo-se o conteúdo originário no nº 1 do art.º 34º do RJET, mas aditando-se um nº 2 que, de algum modo, o esvaziava:
“O interessado pode prescindir, na fase
de instalação ou a todo o tempo, da atribuição da categoria, ficando, nesse
caso, o empreendimento turístico isento de categoria na tipologia [estabelecimento
hoteleiro] e grupo [hotel, aparthotel e pousada]
respetivos, sem prejuízo da observância dos
requisitos gerais de instalação e condições de acessibilidade previstos no
presente diploma e dos requisitos referidos no nº 4 do artigo seguinte.”.
Em razão do descontentamento gerado pela proposta,
designadamente no plano associativo, foi a mesma substancialmente
reformulada e discretamente transferida para
a figura da dispensa de requisitos - mais
precisamente para os números 7 e 8 do art.º 39º - com um alcance e objectivos
muito mais limitados.
Do meu ponto de vista bem, pois havia uma forte
preocupação do SET relativamente a projectos que corriam o risco não ver a luz
do dia por não conseguirem cumprir os requisitos. Como o RJET já consagrava a
dispensa de requisitos para projectos
reconhecidamente inovadores e valorizantes da oferta turística (art.º
39º/2), a futura explicitação dos
critérios normativos em sede regulamentar, apresentaria, como alertei na
ocasião, uma acentuada dificuldade. Ou seja, partia-se de uma genérica
preocupação governamental, não alicerçada em qualquer situação já ocorrida,
tendo de identificar-se casos que a actual grelha de requisitos impeça a
criação do empreendimento turístico com a classificação pretendida pelo
promotor e dispensarem-se um determinado número de requisitos em sede
regulamentar através da explicitação dos respectivos critérios.
3) A solução que vingou na última
revisão do RJET: dispensa de requisitos apoiada em critérios específicos a
concretizar futuramente pelo legislador em sede regulamentar
A nova solução está reflectida no preâmbulo do
Decreto-Lei nº 15/2014, de 23 de Janeiro: “No processo
de classificação, consagra-se a possibilidade de os requisitos para a categoria
serem dispensados não apenas por apreciação da entidade administrativa, mas
também verificados determinados critérios a concretizar em portaria.”.
Deste modo, no campo da dispensa de requisitos (art.º
39º), aditaram-se dois números que contemplam a nova solução. O nº 7, permitindo
nas quatro primeiras tipologias e nos hotéis rurais que os “requisitos
exigidos para a atribuição da categoria [sejam] ainda dispensados sempre que verificado o cumprimento dos critérios específicos para esse efeito previstos na
portaria”. Por seu turno, o novo nº 8 exige que o cumprimento desses
“critérios específicos referidos
no número anterior é verificado em
sede de auditoria de classificação a que se
refere o artigo 36.º”.
4) A solução proposta em sede
regulamentar (Fevereiro de 2015)
Na proposta de alterações à Portaria nº 327/2008, de 28 de Abril, recentemente distribuída,
afirma-se no respectivo preâmbulo que as alterações ao RJET consagraram “para
além da já existente dispensa casuística de requisitos mínimos obrigatórios, a possibilidade de dispensa da atribuição da categoria, ficando a
classificação do empreendimento turístico, por esta via,
limitada à atribuição da
tipologia e, quando aplicável, do grupo. Este
novo mecanismo de dispensa depende de um pedido expresso do interessado e, nos
termos previstos no n.º
7 do artigo 35.º do
Decreto-Lei n.º
39/2008, de 7 de março, encontra-se condicionado ao
cumprimento de determinados critérios específicos que agora cumpre
fixar.” (sublinhado nosso).
A parte que se encontra sublinhada é exactamente onde
ocorre o ilegal desvio do plano regulamentar , que é concretizado no nº 2 do
art.º 4º-A.
As razões avançadas na proposta regulamentar são as seguintes: “Com este mecanismo, pretendeu o legislador não só criar uma alternativa para os interessados cujo projeto ou empreendimento não se adeque às exigências do atual sistema de classificação por categoria ou por este seja condicionado ou até mesmo inviabilizado, como também abrir um espaço de maior flexibilidade dentro do qual um determinado projeto ou empreendimento se possa, no essencial, direccionar às caraterísticas da procura. Em qualquer caso, os critérios a cumprir para a dispensa de atribuição da categoria procuram garantir que o projeto ou o empreendimento se tenha de situar num patamar equivalente às categorias médias, assim se salvaguardando o nível de qualidade da oferta nacional.”
As razões avançadas na proposta regulamentar são as seguintes: “Com este mecanismo, pretendeu o legislador não só criar uma alternativa para os interessados cujo projeto ou empreendimento não se adeque às exigências do atual sistema de classificação por categoria ou por este seja condicionado ou até mesmo inviabilizado, como também abrir um espaço de maior flexibilidade dentro do qual um determinado projeto ou empreendimento se possa, no essencial, direccionar às caraterísticas da procura. Em qualquer caso, os critérios a cumprir para a dispensa de atribuição da categoria procuram garantir que o projeto ou o empreendimento se tenha de situar num patamar equivalente às categorias médias, assim se salvaguardando o nível de qualidade da oferta nacional.”
Como é bom de ver, a solução da dispensa de
requisitos consagrada pelo RJET - que tem de ser respeitada no plano
regulamentar - difere da proposta, que no essencial retoma a proposta
originária do SET, a qual se estribava num novo nº 2 do 34º, um texto
exploratório que não passou a letra de lei.
Ou seja, os empreendimentos turísticos, maxime
hotéis sem a categoria de uma a cinco estrelas, esbarram com o art.º 34º do
RJET cuja facti species lapidarmente dispõe: “A classificação destina-se a atribuir, confirmar ou alterar a
tipologia e a categoria dos empreendimentos turísticos e tem natureza
obrigatória.” (sublinhado nosso).
Não existe, assim, qualquer possibilidade de o plano regulamentar, sem uma nova
alteração do RJET, permitir a supressão das estrelas na classificação de um
hotel, ainda que por iniciativa do empreendedor.
Carlos Torres, Publituris de 25 de Fevereiro de 2015